Muitos veganos ficam irritados com os não veganos que dizem se importar moralmente com os animais mas continuam a consumi-los. Os veganos frequentemente invocam uma analogia com a escravidão humana. É assim: todos nós concordamos que o uso de humanos exclusivamente como recursos—a condição conhecida como escravidão humana—é moralmente detestável. Similarmente, se as pessoas acham que os animais são membros da comunidade moral, então também não deveriam estar tratando os animais exclusivamente como recursos, e deveriam se opor à sua escravidão. E se alguém se opõe à escravidão animal, esse alguém adota e promove o veganismo.
A analogia funciona?
Sim e não. A analogia da escravidão, que venho usando há duas décadas, não é particularmente convincente se o que se afirma é que os não humanos, ao contrário dos escravos humanos, têm interesse apenas em não sofrer e não têm interesse na vida continuada ou em autonomia. E essa é uma crença central da posição bem-estarista que vem desde Bentham—a de que os animais têm a capacidade de sofrer e têm interesse em não sofrer, mas são cognitivamente diferentes de nós, pois não são autoconscientes e não têm interesse na existência continuada. Em outras palavras: os bem-estaristas afirmam que os animais não têm interesse em não ser escravos; eles têm apenas interesse em ser escravos “felizes”. Essa é a postura promovida por Peter Singer, cuja visão neobem-estarista deriva diretamente de Bentham. Portanto, segundo essa postura, não importa, moralmente, que usemos os animais, mas importa como os usamos. A questão moral não é o uso, mas o tratamento.
Junte-se a isso o fato de que a maioria dos bem-estaristas são utilitaristas—eles afirmam que o que determina o certo ou o errado é aquilo que maximiza o prazer, a felicidade, ou a satisfação de interesses de todos os afetados—e você acaba ficando com a opinião de que, contanto que um animal não sofra “demais”, e dado que o animal não tem interesse na própria vida, é melhor ele ter tido uma vida razoavelmente agradável e ido parar nos pratos dos humanos do que não ter sequer vivido. Se oferecermos uma vida razoavelmente agradável e uma morte relativamente indolor aos animais, na realidade lhes conferimos um benefício trazendo-os à existência e usando-os como nossos recursos.
Portanto, é compreensível que, se a pessoa é bem-estarista, ela não aceita a analogia com a escravidão. A escravidão “feliz” não é um problema; é uma coisa boa. O problema da escravidão humana é que mesmo as formas “humanitárias” ou “compassivas” de escravidão violam os direitos humanos fundamentais à existência continuada, à autonomia, etc. Mas se os animais não têm esses interesses, então a escravidão “humanitária” ou “compassiva” pode ser exatamente aquilo de que se precisa. E é justamente esse modo de pensar que motiva o movimento pela carne/produtos animais “felizes” e toda a iniciativa bem-estarista de tentar tornar o uso de animais mais “humanitário”, mais “compassivo”, etc.
Tenho argumentado que esse modo de pensar é problemático sob ao menos dois aspectos:
Primeiro, a noção de que os animais não humanos não têm interesse na existência continuada—de que eles não têm interesse em suas próprias vidas—se apoia no conceito especista de qual o tipo de autoconsciência que importa moralmente. Tenho argumentado que todo ser senciente tem, necessariamente, interesse na existência continuada—todo ser senciente valoriza sua própria vida—e que dizer que só aqueles animais (animais humanos) que têm um determinado tipo de autoconsciência têm interesse em não ser tratados como mercadorias é desviar da questão moral fundamental. Mesmo se, como algumas pessoas afirmam, os animais não humanos viverem em um “presente eterno”—e eu penso que, em termos empíricos, não é esse o caso, pelo menos para a maioria dos não humanos que exploramos rotineiramente e que têm memórias do passado e um sentido de futuro—eles têm, em cada momento, um interesse em continuar a existir. Dizer que isso não conta no plano moral é simplesmente especista.
Segundo, mesmo se os animais não tiverem interesse em continuar vivos e tiverem apenas interesse em não sofrer, a noção de que, em termos práticos, algum dia seremos capazes de dar o devido peso moral a esse interesse não passa de fantasia. A noção de que os proprietários algum dia darão um peso significativo ao interesse que a propriedade tem em não sofrer simplesmente não é realista. É possível em teoria? Sim. É possível em termos práticos no mundo real? Absolutamente não. Os bem-estaristas frequentemente falam em tratar os “animais de granja ou fazenda” como tratamos os cães e gatos que amamos e consideramos membros da nossa família. Será que alguém realmente pensa que isso é possível na prática? O fato de não pensarmos em comer nossos cães ou gatos é um sinal de que isso não é possível.
Além do mais, uma tese central do meu trabalho tem sido a de que como os animais são propriedade—são bens econômicos ou mercadorias—geralmente só protegemos seus interesses quando obtemos um benefício econômico ao dar essa proteção. Isso significa que o padrão de bem-estar animal sempre será muito baixo (como é agora, e apesar de todo o absurdo da exploração “feliz” ou “compassiva”), e a reformas do bem-estar geralmente aumentarão a eficiência produtiva; ou seja, protegeremos os interesses dos animais em situações onde o tratamento esteja sendo economicamente ineficiente, e, na maioria das vezes, as reformas do bem-estar farão muito pouco além de corrigir essas ineficiências. Por exemplo, o uso de celas de gestação para porcas é economicamente ineficiente; há alternativas supostamente mais “humanitárias” que na realidade aumentam a eficiência produtiva. Similarmente, asfixiar frangos com gás é mais eficiente, em termos econômicos, do que atordoá-los com choque elétrico.
Então eu compreendo por que os bem-estaristas têm um problema com a analogia da escravidão. Acho que eles estão errados sob vários aspectos, mas eles nunca discutem realmente os argumentos. Em vez disso, eles alegam que sou “divisionista” e “não ligo para os animais que estão sofrendo agora” porque apresento esses argumentos. Alguns deles fazem mais drama ainda.
O paradigma dos direitos que, conforme a minha interpretação, requer moralmente a abolição da exploração animal e exige o veganismo como uma questão de justiça fundamental, é radicalmente diferente do paradigma bem-estarista que, em teoria, foca na redução do sofrimento e, na realidade, foca em dar uma arrumadinha nas margens economicamente ineficientes da exploração animal. Na ciência, quem se alinha com um paradigma é frequentemente incapaz de entender e envolver quem se alinha com um outro paradigma, precisamente porque as linguagens teóricas que eles usam são incompatíveis.
Penso que a situação seja semelhante no contexto do debate entre os direitos animais e o bem-estar animal. E é por isso que os bem-estaristas simplesmente não podem entender ou aceitar a analogia da escravidão.
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Se você não for vegano(a), por favor considere tornar-se vegano(a). É uma questão de não violência. Ser vegano(a) é a sua declaração de que você rejeita a violência contra os outros seres sencientes, contra si mesmo(a) e contra o meio-ambiente do qual todos os seres sencientes dependem.
Gary L. Francione
Professor, Rutgers University
© 2012 Gary L. Francione
Tradução: Regina Rheda
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