Certos secularistas, como Richard Dawkins,
Sam Harris e o falecido Christopher
Hitchens, frequentemente chamados de “novos ateístas”, são os
últimos a nos dizerem que devemos nos guiar pela racionalidade e a ciência para
descobrir o que pensar sobre as questões morais importantes. Esses novos
ateístas geralmente rejeitam a noção de que pode haver verdades morais
independentes ou que as ações podem ser intrinsecamente erradas; e rejeitam a
noção de que há regras morais absolutas. Afirmam que a moralidade informada por
considerações espirituais ou religiosas deve ser rejeitada.
Quero examinar alguns aspectos dessa posição como uma questão geral que,
em muitos sentidos, não é realmente uma novidade trazida pelos novos ateístas. Também
quero discutir como essa posição afeta nosso pensamento sobre a ética animal
dado que, nestes últimos anos, venho notando um aumento no número de defensores
dos animais que acreditam que os direitos animais possam ser seguramente
baseados na racionalidade e na ciência apenas, e que rejeitam a noção de que
pode haver verdades morais independentes ou que as ações podem ser intrinsecamente
erradas.
Deixem-me fazer duas observações logo de saída: Primeiro, esta é uma
questão complexa que requer mais do que um simples post de blog. Estou
apresentando meus pensamentos preliminares
aqui, e terei muito mais a dizer futuramente, em um trabalho que estou
desenvolvendo sobre realismo moral e direitos animais.
Segundo, quero enfatizar que se rejeitarmos a ideia de que a
racionalidade científica fornece o que necessitamos saber sobre a moralidade,
não ficamos relegados a abraçar crenças “sobrenaturais” ou a recuar para alguma
espécie de subjetivismo ou relativismo moral. Uma pessoa pode aderir à visão do
realismo moral ou aceitar o princípio da não violência como uma verdade moral,
por exemplo, sem aderir à visão de que há uma deidade criadora ou de que a
personalidade sobrevive à morte física. De fato, parte do problema é que este
debate é frequentemente caracterizado como um debate que exige que se
rejeitarmos o relativismo, o subjetivismo ou alguma outra posição semelhante,
devemos escolher entre o sobrenatural e a racionalidade científica. Essa é uma
escolha falsa.
Por favor, escolha: ou os utilitaristas ou os jihadistas
Em sua resenha
do livro de Dawkins, The God Delusion,
o teórico literário Terry Eagleton
observa: “Exceto por algumas referências ocasionais pro forma a pessoas de fé religiosa ‘sofisticadas’, Dawkins tende a
ver a religião e a religião fundamentalista como a mesma coisa”.
Além disso, Dawkins também tende a ver a noção da moralidade baseada na
regra como uma coisa relacionada à religião, e, dado que Dawkins tende a
igualar religião com religião fundamentalista, ele faz comparações entre a
moralidade baseada na regra e o fundamentalismo religioso.
Por exemplo, no livro The God Delusion, Dawkins, após aparentemente
concordar com Kant e observar que embora “deontologia não seja exatamente o
mesmo que absolutismo moral”, diz que “para a maioria das finalidades, em um
livro sobre religião não há necessidade de insistir na distinção”. E diz que
“nem todo absolutismo é derivado da religião. Todavia, é muito difícil defender
as morais absolutistas baseando-se em outra coisa que não a religião”.
Eu certamente concordo que precisamos de alguma forma de realismo moral
que forneça uma base segura para os padrões morais absolutos que considero
verdadeiros: que é absolutamente errado, por exemplo, explorar os vulneráveis;
é absolutamente errado cometer estupro ou abuso sexual infantil, ou explorar os
animais. Mas não é necessário derivar a base para esses padrões a partir da religião.
Dawkins observa que, em contraste com os deontologistas, os “consequencialistas
afirmam, com mais pragmatismo, que a moralidade de uma ação deve ser julgada
pelas suas consequências”, e contrasta o “absolutista” com o “consequencialista
ou utilitarista” que tem maior flexibilidade para considerar as questões
morais. Então parece que Dawkins esteja tentando caracterizar as teorias
consequenciais, como o utilitarismo, como menos propensas a ter ligação com o
absolutismo da religião fundamentalista do que as teorias dos direitos. Você já
ouviu isso antes? Já ouviu os apoiadores do bem-estar animal, que são sempre
consequencialistas de um tipo ou outro, caracterizarem os apoiadores dos
direitos animais como “fundamentalistas”?
De todo modo, dentro da medida em que este debate é visto como uma
competição entre os novos ateístas e os fundamentalistas religiosos que
defendem o assassinato de médicos praticantes de abortos, cometem atentados
suicidas, oram pelo apocalipse, fazem aviões se chocarem contra edifícios,
promovem todo tipo de discriminação e ódio, e geralmente apoiam toda espécie
imaginável de violência em nome de seus deuses, os novos ateístas vencem
facilmente, sem o exame e a discussão que este assunto exige.
Mas o debate entre os novos ateístas e os outros exige mais do que
decidir se preferimos os utilitaristas aos jihadistas. O aspecto mais
interessante desse debate foca na posição de que qualquer conversa sobre padrões morais absolutos ou verdade moral
objetiva divorciados da racionalidade científica é problemática e deve ser
rejeitada se a pessoa não quiser ser “inimiga da razão”. Nesse sentido, o
debate é visto como sendo entre os novos ateístas e qualquer pessoa que afirme
que precisamos de alguma verdade moral objetiva e independente, alguns padrões
morais absolutos que vão além do que a ciência é capaz de nos dizer. Embora os
extremistas religiosos certamente se encaixem neste segundo grupo, a
controvérsia mais geral existiria mesmo se eles não estivessem em cena.
Quero focar nos membros do segundo grupo que aderem a alguma versão do
realismo moral, ou a noção de que os enunciados morais expressam afirmações que
pretendem ser verdadeiras ou falsas, e que ao menos algumas dessas afirmações
são verdadeiras. Por exemplo, um realista moral considera o enunciado “a
escravidão é errada” semelhante ao enunciado “a cadeira é marrom”. A primeira
declaração, como a segunda, pretende relatar um fato, embora um fato moral, e ambas são verdadeiras se as coisas
forem conforme se afirma (a escravidão é
errada; a cadeira é marrom). O
realismo moral não é a visão de que
as verdades morais são construídas, ou tornadas verdadeiras, como resultado do
que as pessoas valorizam moralmente; em vez disso, as verdades morais existem
independentemente de qualquer perspectiva, inclusive as perspectivas ideais.
Além dos realistas morais, também quero incluir nesse segundo grupo as pessoas
com posições relacionadas a tradições espirituais não ocidentais (e com
frequência não teístas) que promovem a não violência, ou que aderem a religiões
teístas tradicionais mas rejeitam as interpretações dessas tradições que apoiam
a violência e o ódio, abraçando em vez disso interpretações que apoiem a não
violência e o amor universal.
Um exemplo do tipo de debate que tenho em mente (mas não vou discutir em
detalhes aqui) é aquele entre Christopher
Hitchens e Chris Hedges, ou entre Sam Harris
e Hedges.
Hedges rejeita o tipo de fundamentalismo religioso que é o alvo principal dos
novos ateístas. Mas ele argumenta
que a racionalidade científica não é a resposta pois ambos os grupos são
igualmente intolerantes: “Quem não enxergar as coisas como eles enxergam, não
falar como eles falam e não agir como eles agem merece apenas a conversão ou a
erradicação”.
O debate entre Hedges e os novos ateístas é informado, em alguma medida,
pelo fato de que Hedges, ex-correspondente internacional e vencedor do Prêmio Pulitzer
de jornalismo, fez reportagens sobre conflitos no Oriente Médio, Bálcãs, África
e América Central, e passou muito tempo testemunhando todo tipo de atrocidades.
Compreensivelmente, ele tende a focar o debate em como os novos ateístas
parecem apoiar coisas como a guerra contra o Iraque, conforme fez Hitchens, ou
a alegação de Harris de que estamos “em guerra com o Islão”.
Embora em geral eu concorde com a opinião de Hedges sobre os novos
ateístas, quero explorar a questão sob uma perspectiva mais ampla. Na próxima
parte, argumento que a noção de que devemos agir racionalmente sob qualquer
circunstância é uma noção normativa que, como os axiomas da matemática, não
pode ser “provada” e deve ser aceita como verdadeira.
Mas ainda se a racionalidade for aceita como normativamente desejável,
ou mesmo como uma espécie de requisito formal, não podemos dar respostas às
questões morais sem recorrer a crenças morais que não podem ser “provadas”
dentro do quadro da ciência e da racionalidade, e dependem, para sua verdade—se
forem verdadeiras—de algo que é independente de desejos contingentes, pontos de
vista, perspectivas ou paixões. Depois eu considero uma questão relacionada:
que a ciência é uma atividade social que não
pode ser separada das considerações políticas e morais.
Racionalidade e verdade moral
A racionalidade se trata da adequação dos meios aos fins. Quando falamos
que uma pessoa é irracional, geralmente queremos dizer que ela está escolhendo
meios inapropriados a um determinado fim.
A racionalidade também se trata da coerência das crenças. Se eu acredito
em “se X então Y” e também acredito em “X”, então devo também acreditar em “Y”.
Mas há dois sentidos em que a afirmação “devemos ser racionais” exige
noções normativas e as mesmas crenças não demonstráveis (isto é, que não podem
ser provadas) que algumas pessoas pejorativamente descartam.
Primeiro vamos começar com a afirmação “devemos ser racionais” sem levar
em conta o que a racionalidade exige
que façamos ou em que ela exige que
acreditemos.
Por quê? Por que “devemos” ser racionais? Por que “devemos” acreditar em
“Y” se acreditamos em “Se X então Y” e em “X”?
Como podemos “provar” essas declarações do tipo “devemos”?
A resposta curta é que não podemos prová-las. Assim como os axiomas da
matemática, elas não podem ser provadas e têm de ser aceitas como verdadeiras.
Ou seja, a afirmação “devemos ser racionais” é uma posição normativa não mais
segura do que a afirmação “devemos ser bondosos e amar uns aos outros”.
Agora, uma resposta poderia ser que, embora não possamos provar a
verdade da afirmação “devemos ser racionais”, essa afirmação deve ser
verdadeira porque, sem ela, não podemos fazer afirmações ou ter argumentos, em
primeiro lugar. Mas esse simplesmente não é o caso. Mesmo se não
reconhecêssemos a verdade objetiva da racionalidade, ainda poderíamos fazer
afirmações e ter argumentos que seriam válidos ou inválidos. Podíamos
simplesmente não afirmar que alguém que não aceitou a conclusão de um argumento
sólido estava sendo irracional. Portanto essa resposta ainda deixa um “devemos”
a ser explicado no nível mais básico.
Segundo, mesmo se ignorarmos as preocupações anteriores e aceitarmos que
devemos escolher o meio mais favorável aos nossos fins, ou que devemos ter
crenças que sejam coerentes com as nossas outras crenças, o que a racionalidade
tem a dizer sobre que fins escolhemos e que crenças temos?
Resposta: nada. Absolutamente nada.
A racionalidade é um requisito formal, na melhor das hipóteses, e não
pode servir para identificar que fins devemos escolher e que crenças devemos
ter. Por exemplo, ter uma conduta que ocasionará o fim do mundo é irracional se
você não enxergar a extinção da vida como um fim desejável. Mas para aqueles
que pensam que a extinção é valiosa porque consideram os humanos uma praga na
Terra, ou que não se importam com as futuras gerações, ou que valorizam coisas
que prejudicam o planeta, um comportamento ambientalmente destrutivo pode ser
perfeitamente racional. A racionalidade não
pode decidir a questão de se a humanidade é uma praga no planeta e deve ser
extinta, ou se temos a obrigação de assegurar que o planeta esteja sadio para
as futuras gerações porque os humanos têm valor moral.
Semelhantemente, se eu acreditar que “todos os humanos têm um valor
inerente igual” e aceitar que os membros do grupo X são, de fato, humanos,
então a racionalidade da crença exige que eu conclua que os membros do grupo X
têm um valor inerente igual ao dos outros humanos.
Mas apesar da visão do filósofo Immanuel Kant de que a
razão requer o reconhecimento do valor inerente igual para os humanos, eu posso
rejeitar o igualitarismo por acreditar que os humanos que se distinguem na arte
ou na música têm mais valor inerente do que os demais entre nós pois enriquecem
nossas vidas de um modo que os demais não enriquecem. Posso tomar a posição de
que esses humanos “especiais” não estarão agindo de modo errado se tratarem os
outros de um modo totalmente instrumental. Embora Kant apresente convincentes
argumentos sobre a igualdade, que eu afirmo em meu próprio trabalho que
deveriam ser estendidos aos animais não humanos, simplesmente não há meio de
podermos, só com o uso da racionalidade, “provar” que Kant está certo. A teoria
de Kant (com ou sem as minhas modificações) requer que tenhamos certas crenças
morais sobre a integração à comunidade moral, e nenhuma racionalidade
“objetiva” pode nos compelir a ter esses pontos de vista.
A escolha de fins para valorizar, ou de crenças morais para ter, envolve
algo que vai além da racionalidade. E não há como evitar isso. Os novos
ateístas Hitchens e Harris, e Chris Hedges, são pessoas racionais pois aceitam
que suas crenças devem ser coerentes umas com as outras. Mas eles têm crenças
morais muito diferentes.
É interessante observar que alguns dos mais proeminentes novos ateístas
acreditam, como acreditava Ayn Rand,
que o pensamento ateísta racional nos conduz numa direção que simplesmente
combina com uma visão de mundo de direita. Conforme mencionei antes, Hitchens
era um vigoroso defensor da guerra contra o Iraque e tinha vários pontos de
vista de direita, e Sam Harris nos diz que estamos “em guerra com o Islão”,
declarando: “A ligação entre a crença e o comportamento eleva os critérios
consideravelmente. Algumas proposições são tão perigosas que pode até ser ético
matar pessoas por acreditarem nelas”. De fato, Harris professa demonstrar que
podemos provar “cientificamente” que o islamismo é uma religião moralmente má.
Independentemente de se acreditar ou não nesses modos de ver (eu
certamente não acredito), é meio tolo negar que eles refletem uma crença em
certas noções morais que não podem ser provadas como verdadeiras de um modo
“objetivo” ou incontroverso. Chris Hedges discorda desses modos de ver, e não é
porque ele seja irracional. Ele simplesmente aceita um conjunto de princípios
morais diferente. O debate entre os novos ateístas, que têm todo tipo de
crenças em uma variedade de noções normativas, e pessoas como Hedges, não pode
ser resolvido por nenhum apelo à racionalidade; só pode ser resolvido decidindo
qual visão de moralidade você compartilha.
Noam Chomsky descreve
Harris e Hitchens como “fanáticos religiosos”
que acreditam na “religião do estado” pois argumentam que temos de defender a
violência e as atrocidades do estado porque elas estão sendo praticadas para
assegurar o progresso humano e trazer outras maravilhosas consequências.
Essa noção de que o mundo está mudando numa direção positiva também
encontra expressão em Dawkins, que defende uma total baboseira chamada “Zeitgeist
moral”, descrita por ele
como um “amplo consenso liberal de princípios éticos” em direção ao qual
estamos indo, e que não é impulsionado pela religião e se desenvolve apesar da
religião. Fora que alguns dos valores que ele descreve de modo positivo foram
primeiramente impulsionados por interpretações não violentas de tradições
religiosas e espirituais, alguns dos argumentos que ele desenvolve para mostrar
que as coisas estão melhorando são notáveis. Por exemplo, ele nos diz que Hitler
“não teria se destacado na época de Calígula ou Gengis Khan”. Ele reconhece que
houve casualidades civis no Iraque, mas que elas foram de “magnitude mais baixa
do que os números comparáveis da Segunda Guerra Mundial”. Fora que Dawkins
julga moralmente as guerras pelo seu número de casualidades (poderíamos,
digamos, invadir países que não têm exércitos?; isso certamente reduziria as
casualidades), o “Zeitgeist moral” está mudando porque morreram
menos pessoas numa guerra “preventiva” fabricada contra um adversário que não
nos ameaçava (Saddam Hussein) do que numa guerra contra Hitler, o qual, por sua
vez, representou um grande progresso em relação a Calígula.
Francamente, acho as posições de Dawkins, aqui, muitíssimo reacionárias.
É interessante que Sam Harris alegue ser um realista moral. Mas, assim
como minha alegação de que sou o presidente dos Estados Unidos não me torna
presidente, a alegação de Harris de ser um realista moral não o torna um
realista moral. Realismo moral é, nas palavras de Russ Schafer-Landau, em seu
livro Moral Realism: A
Defence (Oxford 2003), a crença de que “há verdades morais que
prevalecem independentemente de qualquer perspectiva que se prefira, no sentido
de que os padrões morais que fixam os
fatos morais não se tornam verdadeiros pela sua ratificação dentro de nenhuma dada
perspectiva real ou hipotética”. Não me parece que Harris seja um realista
nesse sentido.
Embora Harris não seja claro, ele parece estar argumentando que, por
causa dos tipos de seres que somos, não podemos evitar dar valor ao bem-estar, que
tratamos como objetivamente valioso, e nos consideramos moralmente obrigados a
gerar tanto bem-estar quanto possível. Isso faria de Harris um construtivista
pois o que ele está dizendo nessa interpretação é que o bem-estar se torna um
valor moral “verdadeiro” como resultado da nossa perspectiva.
Alternativamente, Harris pode estar dizendo que, enquanto uma questão de
significado da linguagem, as afirmações sobre a moralidade são realmente
afirmações descritivas sobre o bem-estar, e a ciência pode nos dizer se essas
afirmações são verdadeiras ou falsas. Ou seja, assim como dizemos que não
podemos nos ocupar da ciência sem dar valor a um certo tipo de evidência,
coerência, etc. porque é exatamente isso que, por definição, é fazer ciência,
não podemos nos ocupar de uma atividade moral sem dar valor ao bem-estar porque
isso que é, por definição, se ocupar de uma atividade moral. Portanto, quando
dizemos “John deve realizar a ação A”, o que estamos querendo dizer é que “Se John fizer A, provavelmente
ocorrerá bem-estar”. A ciência pode nos dizer se, e em que medida, A produzirá
bem-estar. Mas isso envolve uma simples deflação semântica (Harris diz que as
declarações morais são “idênticas” às declarações factuais sobre o bem-estar) e
permite que Harris evite (em seu modo de ver) o problema do “é/devemos” (ver abaixo).
Não há nenhum apelo a qualquer padrão normativo último e objetivamente
verdadeiro. Isso não é uma posição de realismo moral.
Se Harris for interpretado como dizendo que o bem-estar é valioso da
maneira independente contemplada por Shafer-Landau e que estamos obrigados a
maximizá-lo, então ele é simplesmente mais
um pensador consequencialista e não acrescenta nada de novo à teoria ética, exceto, talvez, por introduzir a noção
de que podemos provar “cientificamente” suas proclamações etnocêntricas e xenófobas,
como as de que o islamismo é uma religião moralmente má.
Obter um “devemos” a partir do “é” das afirmações da ciência
Os novos ateístas, ou alguns deles, nos dizem que as noções de verdade
moral objetiva ou independente, ou as crenças espirituais ou religiosas, não
podem nos dizer o que “é”. Apenas a ciência pode nos dizer quais são os fatos
“reais”. A ciência fornece a Verdade objetiva. O resto é menos do que a Verdade.
De novo, essa visão ignora que as metateorias que estabelecem o que se
considera “ciência” são, como os axiomas da matemática ou a posição de que a
racionalidade é um requisito formal, coisas que devem ser aceitas como
verdadeiras e que não se pode provar que são verdadeiras. Embora os adeptos do
novo ateísmo possam aceitar isso como uma proposição abstrata, eles não
conseguem entender seu significado para suas iniciativas.
Thomas Kuhn
em The Structure of
Scientific Revolutions, provavelmente o livro mais influente sobre
filosofia da ciência escrito no século 20, popularizou o uso do “paradigma”
para descrever as conquistas científicas que servem durante certo período de
tempo para determinar o que se observar, que tipos de perguntas fazer, como
estruturar qualquer investigação e como interpretar os resultados das
investigações. Kuhn argumentou persuasivamente que não se podia provar se os
paradigmas eram verdadeiros ou falsos e que era ingênuo ver a ciência como
“Verdade”. Diferentes paradigmas representam diferentes visões de mundo;
diferentes pontos de vista.
Paul Feyerabend,
em obras como Against Method,
foi mais longe com sua noção, argumentando contra a ideia racionalista de que
há regras identificáveis do método científico que determinam qual ciência é uma
“boa” ciência. Feyerabend promoveu a noção de que a ciência envolve mais mito
do que os cientistas querem reconhecer, e que o sucesso dos cientistas
frequentemente envolveu elementos não científicos, incluindo inspiração
proveniente de fontes míticas ou religiosas. Feryerabend deixou claro que a
linha divisória entre a ciência de um lado e a religião, o mito, a mágica e
tudo mais do outro é um mito equivalente àquilo que os cientistas alegam rejeitar
como mito.
Mas mesmo se não se aceitar o que Kuhn, Feyerabend (e muitos outros) disseram
sobre as suposições que a ciência deve fazer e não podem ser provadas, ou que
não há uma clara linha divisória entre a ciência e a religião, não se pode
acreditar seriamente que a ciência, conforme é praticada, esteja de alguma
forma separada das instituições políticas e sociais. Como mostraram Richard
Levins e Richard Lewontin em seu inovador livro The Dialectical
Biologist, a ciência ocorre dentro de um contexto social e reflete
uma perspectiva inerentemente política.
Para entender esse ponto, vejamos um exemplo envolvendo o livro de
Richard Dawkins de 1976, The Selfish Gene.
Será que Dawkins está fazendo uma afirmação “científica” sobre os “fatos” dos
genes, ou, em vez disso, está focando no egoísmo e no altruísmo humanos e
usando esses comportamentos para fornecer uma descrição supostamente
“científica” do processo evolutivo como uma questão geral, que depois ele usa
para explicar o egoísmo e o altruísmo humanos? Eu acredito, juntamente com a
filósofa Mary Midgley
e outros, que a posição proposta por Dawkins é uma hipótese calcada mais no
individualismo reducionista do Iluminismo do que na visão de Darwin, a qual,
como argumenta Midgley, envolvia interação e cooperação, e que o gene egoísta
não é um fato da natureza. É fascinante notar que o livro de Dawkins se
popularizou precisamente na época em que as noções de Reagan/Thatcher sobre a
desejabilidade do egoísmo, da independência e do individualismo se
popularizaram.
Sam Harris declara explicitamente como “fato” que nós estamos “em guerra
com o Islão”. Esse “fato” representa uma declaração objetivamente verdadeira do
tipo “é”, ou meramente reflete a adesão de Harris a certas crenças políticas
que determinam como ele interpreta o que está acontecendo no mundo e os “fatos”
que ele encontra? Harris alega que a moralidade do Talebã é má “do ponto de vista da ciência”.
A ciência nos diz que devemos acreditar no que a evidência parece
mostrar. Isso em si é uma afirmação normativa. Mas suponhamos que devamos
acreditar no que a evidência mostra. O que conta como evidência? A resposta é
que certas evidências, que são coerentes com as suposições do paradigma
científico, contam, mas todas as outras evidências são excluídas ou ignoradas.
Pode haver tipos completamente diferentes de empirismo (a teoria de que todo
conhecimento provém dos sentidos, em vez de ser inato). É incorreto dizer que o
realismo moral ou a totalidade das tradições espirituais não se preocupam com a
evidência ou que para eles não há evidência. Há uma preocupação com a evidência
e há evidência; só que isso não é reconhecido como conhecimento “científico”
porque a ciência rejeita esse tipo de evidência logo de saída. Há muitas coisas
para se medir; a ciência mede apenas algumas e até define como a medição pode
proceder. Tudo mais é ignorado.
E como afirmava William James,
podemos ter justificativa para ter crenças espirituais ou religiosas embora não
tenhamos evidência para essas crenças.
Os novos ateístas oferecem uma escolha incompleta e empobrecida: uma
falsa dicotomia entre o fundamentalismo religioso e o que é, com efeito,
cientificismo, ou “uma confiança exagerada na eficácia do métodos da ciência
natural aplicados a todas as áreas de investigação (como na filosofia, nas
ciências sociais e nas humanidades)”. Mas supondo que a ciência possa nos
fornecer algumas afirmações incontroversas do tipo “é”, não podemos obter
nenhuma afirmação do tipo “devemos” a partir daquelas afirmações “é”. Como
observa Chris Hedges:
“A crença de que as disciplinas racionais e quantificáveis como a ciência podem
ser usadas para aperfeiçoar a sociedade humana não é menos absurda do que uma
crença em mágica, em anjos e na intervenção divina”.
A crença de que a ciência nos provê de respostas “verdadeiras” a
perguntas morais importantes tem mostrado, repetidamente, os resultados mais
perturbadores. A ciência nos disse que as mulheres ficariam fisicamente
avariadas se se educassem demais; de fato, a ciência foi repetidamente usada
para justificar a discriminação com base no sexo. A ciência nos disse que as
pessoas de cor eram física e cognitivamente diferentes das pessoas brancas,
como base “factual” para se justificar a escravidão humana. Há incontáveis
exemplos de como a ciência tem sido usada para justificar muita violência e uma
ampla gama de discriminação.
Um crítico pode contra-argumentar que a ciência tem sido usada para
apoiar bons fins morais também. Por exemplo, os cientistas eventualmente
abandonaram as afirmações “científicas” sobre a suposta inferioridade física
das mulheres. Mas é esse o ponto. Não é a ciência que impulsiona a moralidade;
é a moralidade (e a imoralidade) que impulsiona a ciência. Para fazer uma
analogia (bem livre) com a teoria quântica: nossa consciência moral determina a
realidade que vemos.
Ateísmo e direitos animais
Muitos defensores dos animais afirmam que são ateus. Eles estão
equivocados se pensam que há alguma noção de racionalidade “objetiva”, ou
alguma combinação de racionalidade com fatos científicos que, apesar de
rejeitar premissas morais, possa garantir a conclusão moral de que devemos
parar de explorar os animais.
A filosofia abolicionista que desenvolvi certamente depende da
argumentação racional, mas no final das contas se apoia sobre uma base de
realismo moral. Por exemplo, quando eu declaro “é errado infligir sofrimento a
um ser senciente sem justificação adequada”, quero dizer que isso é um
princípio que representa um fato moral. A partir desse princípio, e juntamente
com a premissa lógica de que a noção moral não tem sentido se uma justificação
adequada puder incluir o prazer, a diversão ou a conveniência de quem está
impondo o sofrimento, eu argumento racionalmente até concluir que não podemos
justificar a maioria dos usos de animais, por mais “humanitários” que possam
ser. (Tenho outros argumentos contra qualquer uso de animais que não seja
descartado pelo argumento da “necessidade”).
Portanto a teoria (ou essa parte dela) se baseia em lógica e
racionalidade, e certos fatos não morais sobre a senciência animal. Mas você
não pode chegar a nenhuma conclusão normativa se não concordar com o fato moral
de que é errado infligir sofrimento a outro ser senciente sem uma justificação
adequada. Se você me pedir para “provar” a verdade desse fato moral usando uma
estrutura prescrita pela ciência, ou de um modo que toda pessoa racional seja
compelida a aceitar, eu não vou poder provar. Isso não significa que “é errado
infligir sofrimento aos animais sem uma justificação adequada” não seja um fato
moral; não significa que nenhuma evidência o sustente. Minhas posições são
baseadas em intuições morais que envolvem crenças baseadas na experiência, mas
que não podem ser “provadas” com o tipo de evidência usada no paradigma
científico prevalecente. Eu sustentaria, entretanto, que a verdade da intuição
moral “é errado infligir sofrimento aos animais sem uma justificação adequada”
é evidente por si mesma, muito embora essa verdade não se apoie na observação.
Outro argumento que eu defendo é que se for para os animais terem alguma
importância moral, devemos lhes atribuir o direito de não ser tratados como
propriedade. Também argumento que atribuir-lhes esse único direito requer a
abolição de todo uso institucionalizado de animais, por mais “humanitário” que
seja. Como no caso do argumento anterior, estou me apoiando em uma intuição
moral: a de que os animais contam moralmente, mesmo se houver diferenças
cognitivas entre os humanos e os não humanos. Se você compartilhar dessa
intuição—se você aceitar o fato moral de que os animais importam
moralmente—então a racionalidade requer que você reconheça que os animais têm
um direito pré legal, e básico, de não ser propriedade. Mas a racionalidade não
requer que você reconheça que os animais não são meras coisas.
Além disso, Peter Singer
e outros que promovem uma posição bem-estarista reconhecem que os animais têm
interesses moralmente significativos, mas, ao contrário da minha posição,
argumentam que podemos, como uma questão moral, manter a instituição da
propriedade animal porque os animais não são reflexivamente autoconscientes à
maneira dos humanos, e não têm interesse em continuar a viver; portanto,
podemos usá-los e matá-los para os propósitos dos humanos, contanto que os
tratemos de um modo que dê suficiente consideração moral aos seus interesses,
particularmente o interesse em não sofrer.
É aqui que reside outra questão importante que não pode ser resolvida
simplesmente com um apelo à racionalidade ou aos fatos da ciência. Singer e eu
concordamos que a senciência é tudo de que se precisa para os animais serem
moralmente significativos, mas, por outro lado, divergimos pois Singer não
considera que a senciência seja suficiente para dar origem ao interesse na vida
continuada, o qual, na opinião dele, é necessário para se ter, ao menos, uma
proteção moral prima facie contra ser
usado como um recurso. Eu considero a senciência suficiente para dar origem a
um interesse na existência continuada, e argumento que esse interesse deve ser
protegido não apenas como uma questão prima
facie, mas como uma questão de direito moral, e que não podemos justificar
nenhum uso de animais.
Fora o fato de que eu reconheço os direitos morais e Singer não (outra
questão que não pode ser resolvida apelando-se à racionalidade científica), há
um sentido em que nossa divergência nesse aspecto parece, ao menos em parte,
ser uma questão factual que pode ser resolvida por alguma espécie de descoberta
“científica” sobre a autoconsciência dos animais. Ou seja, Singer diz que a
maioria dos animais não tem interesse na existência continuada porque esses
animais não são autoconscientes; eu nego isso. Embora haja um componente
factual aqui, que concerne à natureza da consciência dos animais, há, mais
importante ainda, o aspecto não factual de que a ciência não pode resolver o
que é que conta como autoconsciência para propósitos morais. Singer afirma que
a autoconsciência que importa é a autoconsciência reflexiva, e que a maioria
dos animais não humanos não é autoconsciente desse modo; eu aceito que a
maioria dos animais provavelmente não tem autoconsciência reflexiva, mas
sustento que isso é irrelevante porque a única autoconsciência que importa para
se ter interesse na existência continuada é aquela que é incidental à
consciência perceptiva que requer apenas a senciência.
Portanto, Singer e eu podemos concordar quanto aos fatos da consciência dos animais, mas chegamos a conclusões
diferentes devido às nossas diferenças quanto ao que deve ser considerado o
tipo de autoconsciência que conta para se ter interesse em continuar existindo.
De todo modo, a racionalidade e a ciência não podem resolver esses tipos de
divergências.
Racionalidade e uma revolução do coração
Costumo dizer que acabar com a exploração animal requer “uma revolução
do coração”. O que quero dizer com isso é que devemos rejeitar todas as ideologias de dominação e
poder, sejam elas religiosas ou seculares, que nos permitem transformar outros
seres sencientes—humanos ou não humanos—no “outro” e assim ignorar seu valor
moral e tratá-los como coisas. Devemos abraçar a não violência como um
princípio normativo básico—um princípio que vemos refletir uma verdade moral—e
como o princípio moral fundamental do qual emanam todas as nossas posições
morais. A noção de parentesco/afinidade do filósofo Gary Steiner está
diretamente relacionada a essas ideias.
Acredito que muitas tradições espirituais e religiosas, se entendidas
apropriadamente, consideram a não violência um dos principais valores. Rejeito
todas que não fizerem o mesmo. Entretanto, não as rejeito por serem
“irracionais”; as ideologias de poder e dominação podem ser perfeitamente
racionais se sua bússola moral estiver apontada para elas. Rejeito as
ideologias de poder e dominação, sejam elas religiosas ou seculares, porque
elas estão, no meu modo de ver, moralmente erradas.
Uma revolução do coração requer que nos recriemos de modo coerente com
as mais altas aspirações comuns a todas as tradições que reconhecem a
importância da não violência, e que rejeitemos todos os contextos que promovam
a violência, a discriminação, o preconceito e o ódio.
Parte do apelo dos novos ateístas é que todo mundo, inclusive quem possa
ter pertencido a uma religião tradicional, não aguenta mais a violência—o ódio,
o preconceito, a discriminação, as guerras, o materialismo, etc.—promovida por
algumas religiões institucionalizadas. Rejeitar esse ódio e essa violência é
bom. Muitos defensores dos animais corretamente observam que tradições como o
cristianismo, o judaísmo e o islamismo têm sido interpretadas para justificar o
especismo e a exploração animal. Isso tem levado vários desses defensores a se
declararem hostis às crenças espirituais ou à noção da verdade moral objetiva.
Mas talvez devamos considerar que a verdadeira culpada aqui não é a crença
espiritual ou religiosa em si, mas a violência que está sendo interpretada,
correta ou incorretamente, como promovida por algumas dessas tradições.
Dentro da medida em que qualquer espécie de violência seja vista como
aprovada por “deus” ou pela religião, livrar-se do deus ou da religião não
resulta, necessariamente, em paz, amor e justiça. Instituições seculares também
promovem a violência.
O novo ateísta Christopher Hitchens disse: “Estou absolutamente
convencido de que a principal fonte de ódio no mundo é a religião, e a religião
organizada”. Eu discordo. Ódio é que é o problema; nem a religião nem as
instituições seculares causam ódio. Elas simplesmente fornecem um mecanismo
para expressá-lo.
Para mim, o conceito da revolução do coração se apoia numa noção moral
que não se pode provar “verdadeira” da maneira que a ciência caracteriza a
verdade, e dado o que a ciência considera uma evidência aceitável. Ele requer
uma crença na verdade moral da não violência. E a racionalidade científica não
pode nos levar a essa verdade moral, nem a qualquer outra.
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Se você não for vegano(a), por favor torne-se vegano(a). É fácil, e
melhor para a sua saúde e o ambiente (supondo-se que você dê valor à sua saúde
e ao ambiente, mas a racionalidade não requer que você faça isso). Mas, mais
importante ainda, é a coisa moralmente certa a fazer (mas essa é uma conclusão
moral que se apoia numa argumentação que inclui premissas morais que não podem
ser derivadas de fatos científicos ou alguma noção não normativa de
racionalidade).
Gary L. Francione
Professor, Rutgers University
© 2012 Gary L. Francione
Tradução: Regina Rheda