Mais uma vez, o colunista Nicholas D. Kristof, do New York Times,
nos dá uma ideia de como o espírito liberal pós-moderno lida com a violência e
a imoralidade da criação animal.
Kristof obviamente sabe que há algo errado. Senão, ele não escreveria
essas colunas sobre as nossas obrigações morais para com os animais.
De fato, parece que o New York Times tem obsessão pelo assunto em
geral. Desde colunistas como Kristof e Mark Bittman, que não conseguem parar de
tentar nos convencer de que a exploração animal “feliz” é a resposta para a questão
básica de como podemos justificar moralmente o nosso uso de animais, até os
vários artigos daqueles que nos dizem que as plantas têm “intencionalidade
inconsciente” e portanto não devemos concluir que haja uma distinção moral
entre uma salada e um bife, o New York Times realmente—realmente—quer nos assegurar que está
certo continuar fazendo algo que todos sabemos que é errado.
A mais recente contribuição de Kristof à literatura do tipo “não se
preocupe, coma produtos felizes” é um artigo intitulado Where Cows Are
Happy and Food Is Healthy. [Onde as vacas são felizes e a comida é
saudável].
Nesse artigo, Kristof nos fala de Bob Bansen, “um colega do ensino
médio” de Kristof. Bob é um fazendeiro de gado leiteiro “que dá nome a cada um
de seus bovinos—230 vacas e 200 novilhas e bezerros—e os ama como se fossem
crianças”. Kristof nos diz:
Desde que conheci Bob, ele tem dado
nome a cada uma de suas “meninas”, como chama suas vacas. Ande pelo pasto com ele,
e ele apresenta você a elas.
Bob “descobriu como ficar bem de vida tocando uma fazenda que é
eficiente mas também tem alma”. Você pode ter coração e também ter lucro explorando
suas “crianças”. De fato, as vacas “felizes” são mais produtivas:
Hoje, nos Estados Unidos, muitas
vacas leiteiras passam a vida em enormes estábulos, comendo grão e feno,
enquanto seu leite é bombeado. Mas está aumentando a evidência de que as vacas
não têm um bom rendimento quando ficam trancadas, então, agora, muitos
produtores de leite estão retomando o método tradicional, em que elas são
levadas ao campo para pastar.
“A pastagem é uma maravilha para a
saúde da vaca”, disse Bob. “Há tanta evidência de que elas ficam muito mais
felizes lá fora! Você pode prolongar tanto suas vidas, mantendo-as longe do
concreto, então a tendência é essa”.
É sentimentalismo derramado um
fazendeiro querer que suas vacas sejam felizes? Um homem de negócios não
deveria se preocupar apenas com seu lucro?
Bob franziu as sobrancelhas. “Para
a produtividade, é importante ter vacas felizes”, disse ele. “Se a saúde e a
satisfação de uma vaca estão maximizadas, ela é lucrativa. Eu realmente nem
administro tanto a minha fazenda do ponto de vista orçamentário quanto do ponto
de vista das vacas, porque sei que, se cuidar daquelas vacas, o lucro vai
cuidar de si mesmo”.
Mas Nicholas, as vacas morrem de velhice?
Não, aparentemente não:
Quando as vacas envelhecem e sua
produção de leite declina, os fazendeiros as abatem. Bob sempre achou dura essa
parte da produção de laticínios, então ele está aumentando o uso das vacas mais
velhas para amamentar os novilhos. Desse modo, as vacas velhas geram receita
para cobrir suas despesas e seu dia do juízo final pode ser adiado—indefinidamente,
no caso de suas vacas favoritas.
Provoquei Bob, perguntando se ele
não abriria uma casa de repouso para bovinos aposentados, e ele sorriu sem
pedir desculpas:
“Eu me sinto bem quanto a isso”,
disse simplesmente. “As vacas me sustentam tanto quanto eu as sustento, então é
fácil ficar ligado a elas. Quero trabalhar duro para elas porque elas têm
cuidado bem de mim”.
Kristof conclui:
Não precisamos nos incomodar quando
contemplamos a proveniência da nossa comida.
Na próxima vez que você tomar um
copo de leite da marca Organic Valley, ele pode ter vindo de uma das vacas de
Bob. Nesse caso, pode apostar que foi uma vaca feliz. E tem um nome.
Relaxe, todo mundo. Por favor. Não se incomodem. Fiquem seguros de que podem explorar com “compaixão”. Sim,
esses doces animais encontrarão o seu “dia do juízo final” quando forem
abatidos. Mas eles foram “felizes”. Tomem aquele leite. É bom para vocês e para as “crianças” de Bob.
Eu me pergunto se Kristof tem alguma fotografia mostrando a felicidade
das “meninas” de Bob naquele “dia do juízo final”.
Mas a profunda esquizofrenia moral da posição de Kristof se resume em
uma frase: “E tem um nome”. [Em inglês: “And
it has a name.” It é um pronome
pessoal usado para coisas ou seres inanimados. Nota da Tradutora]. “It” has
a name. “It.” Apesar da confusa
preocupação de Kristof, o ponto é que esses animais são coisas.
E esse é todo o problema em poucas palavras. Para Kristof e outros
bem-estaristas, e isso inclui praticamente toda organização grande de “proteção
animal” neste país, os animais são coisas. Eles não são pessoas não humanas.
Não são membros da comunidade moral. Está certo explorá-los, contanto que os
torturemos menos do que eles seriam torturados em uma situação alternativa;
contanto que os mandemos para o matadouro com um nome.
E antes que eu receba os costumeiros e-mails irados de bem-estaristas me
fazendo alguma versão da pergunta: “mas a fazenda de Bob não é melhor do que
uma fazenda de gado leiteiro convencional?”, deixem-me ser claro: É pior impor
10 unidades de sofrimento do que 5 unidades de sofrimento. Mas temos de
justificar ambos os casos. E não
podemos justificar nenhum deles se a
única razão oferecida for o prazer que obtemos com o nosso consumo de leite.
Se o princípio de que o sofrimento desnecessário é errado—um princípio
que todo mundo, inclusive os Kristofs deste mundo, professa aceitar—significar alguma coisa, deve significar que o
prazer não pode ser uma justificação suficiente para impor dor e sofrimento aos
animais. Deve haver uma compulsão; uma necessidade. Não há compulsão aqui. Há
apenas a tragédia daqueles que estão escolhendo fazer algo que sabem que é
moralmente injustificável e expressando um pensamento transparentemente frívolo
disfarçado de pensamento progressista. Mais nada.
Com frequência, ouço os defensores dos animais se queixando de pessoas
que dizem: “não me fale de onde vem a minha comida”. Embora eu compreenda o
quanto é frustrante ouvir isso, prefiro essas pessoas aos Kristofs,
Safran-Foers, Bittmans e toda a comunidade da “proteção animal” que promove
esse absurdo do “consumo compassivo” e nos diz que podemos saber de onde a comida vem, e o que ela envolve, e que isso
está OK, e que não precisamos “nos incomodar”.
E se você duvidar de que essa abordagem da exploração “feliz” é
contraproducente precisamente porque reforça, de forma explícita, a ideia de que não devemos nos
“incomodar” quando comemos aquele pedaço de carne ou tomamos aquele copo de
leite, então eu diria que você não está pensando com clareza. O artigo de
Kristof é um perfeito exemplo desse problema.
Incomodem-se.
Por favor, em nome de tudo que há de decente no mundo; em nome da não
violência; em nome da justiça básica; em nome das “meninas” de Bob que serão
mandadas para seu “dia do juízo final”, por favor, por favor se incomodem.
*****
Se você não for vegano(a), por favor torne-se vegano(a). Veganismo é não
violência. Sobretudo, é não cometer violência contra os outros seres
sencientes. Mas também é não cometer violência contra a Terra e contra si
mesmo.
Gary L. Francione
Professor, Rutgers University
© 2012 Gary L. Francione
Tradução: Regina Rheda
Post relacionado: