quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

A mudança de paradigma requer clareza quanto à base moral: o veganismo

Postado por Gary L. Francione em seu blog em 9 de janeiro de 2012

Se for para vermos uma mudança de paradigma um dia, temos de ser claros quanto a como queremos que o atual paradigma mude.
Devemos dizer claramente que o veganismo é a base inequívoca de qualquer coisa que mereça ser chamada de “movimento pelos direitos animais”. Se “direitos animais” significar alguma coisa, significa que não podemos justificar moralmente nenhuma exploração animal; não podemos justificar tratar os animais como recursos dos humanos, por mais “humanitário” que possa ser o tratamento dado aos animais.
Devemos parar de pensar que as pessoas vão achar o veganismo “desanimador” e que temos de promover algo aquém do veganismo. Se explicarmos claramente as ideias morais e os argumentos a favor do veganismo, as pessoas vão entender. Talvez nem todas se tornem veganas imediatamente; de fato, a maioria não se tornará. Mas devemos sempre ser claros quanto à base moral. Se, para mudar gradualmente, uma pessoa quiser fazer menos do que ser vegana, deixemos que isso seja uma decisão dela, e não algo que aconselhemos a fazer. A base moral deve ficar sempre clara. Nunca devemos promover a exploração “feliz” ou “humanitária” como moralmente aceitável.
A noção de que devemos promover a exploração “feliz” ou “humanitária” como “pequenos passos” ignora que as reformas do bem-estar não resultam num aumento significativo da proteção dos interesses dos animais; de fato, na maioria das vezes, as reformas do bem-estar não fazem nada além de tornar a exploração animal mais produtiva economicamente, ao focar em práticas que são ineficientes em termos econômicos, como as celas de gestação de porcas, o atordoamento elétrico de frangos ou as baias para vitelos. As reformas do bem-estar tornam a exploração animal mais rentável ao eliminar as práticas que são economicamente vulneráveis. Em geral, essas mudanças acabariam acontecendo de todo modo, e mesmo sem as campanhas bem-estaristas, precisamente porque corrigem ineficiências no processo de produção. E as reformas do bem-estar deixam o público mais à vontade quanto à exploração animal. O movimento pela carne/produtos animais “felizes” é uma prova bem clara disso.
Nós nunca defenderíamos o estupro, a escravidão humana ou o genocídio “felizes” ou “humanitários”. Portanto, se acreditamos que os animais importam moralmente e que eles têm interesse não apenas em não sofrer como também em continuar existindo, não devemos ficar investindo nosso tempo e nossa energia na defesa da exploração animal “humanitária” ou “feliz”.
As reformas do bem-estar e todo o movimento pela exploração “feliz” não são “pequenos passos”. Eles são passos grandes – para trás.
Alguns defensores dos animais acham objetável afirmar que o veganismo é a base moral porque isso “julga” as pessoas, ou constitui um julgamento de que o veganismo é moralmente preferível ao vegetarianismo e uma acusação de que os vegetarianos (ou outros consumidores de produtos animais) são pessoas “más”. Sim para a primeira parte; não para a segunda. Não há nenhuma distinção coerente entre a carne e os outros produtos animais. É tudo a mesma coisa e não podemos justificar o consumo de nada disso. Dizer que você não come carne mas come laticínios ou ovos ou qualquer outro produto animal, ou que você não veste peles mas veste couro ou lã, é como dizer que você come carne de vacas malhadas mas não de vacas marrons; não faz nenhum sentido. A suposta “linha” divisória entre a carne e todo o resto é apenas uma fantasia – uma distinção arbitrária feita para possibilitar que alguma exploração seja segmentada e considerada “melhor” ou moralmente aceitável. Isto não é uma condenação dos vegetarianos que não são veganos; é, no entanto, um apelo para que essas pessoas reconheçam que suas ações não estão de acordo com um princípio moral que elas dizem aceitar, e que todos os produtos animais são o resultado da imposição de sofrimento e morte a seres sencientes. Não é uma questão de julgar indivíduos; é, no entanto, uma questão de julgar práticas e instituições. E esse é um componente necessário de um viver ético.
Se considerarmos impossível avaliar que o veganismo é moralmente preferível ao vegetarianismo porque “cada um de nós tem sua própria jornada”, então a avaliação moral se torna uma coisa completamente impossível ou especista. Torna-se impossível porque, se “cada um de nós tem sua própria jornada”, então não há nada a dizer ao racista, ao sexista, ao antissemita, ao homófobo, etc. Se dissermos que essas formas de discriminação são moralmente más, mas no que diz respeito aos animais “cada um de nós tem sua própria jornada” e não podemos fazer avaliações morais quanto a, por exemplo, o consumo de laticínios, então estamos sendo especistas e não estamos aplicando, aos não humanos, a mesma análise moral que aplicamos no contexto humano.
Ao discutir o veganismo com os vegetarianos ou outros consumidores de produtos animais, nunca devemos transmitir a mensagem de que os consideramos gente “má”. Em vez disso, devemos focar em como qualquer forma de exploração animal é incoerente com o princípio moral que eles mesmos dizem ter: ou seja, que os animais são membros da comunidade moral e que a imposição de sofrimento e morte a qualquer membro dessa comunidade – humano ou não humano – requer uma justificativa convincente. E preferências de paladar, conveniência, senso de moda, etc. não constituem uma justificativa convincente.
Finalmente, devemos sempre deixar claro que a exploração animal é uma coisa errada porque implica especismo. E o especismo é errado porque, como o racismo, o sexismo, a homofobia, o antissemitismo, a discriminação de classe e todas as outras formas de discriminação humana, envolve violência contra membros da comunidade moral onde essa violência não pode ser justificada moralmente. Mas isso significa que aqueles dentre nós que se opõem ao especismo também se opõem, necessariamente, à discriminação contra humanos. Não faz sentido dizer que o especismo é errado porque é como o racismo (ou qualquer outra forma de discriminação) mas que não temos uma posição quanto ao racismo. Temos sim. Devemos nos opor ao racismo e devemos sempre ser claros quanto a isso.
Veganismo se trata de não violência. Trata-se de não causar dano aos outros seres sencientes, a si mesmo e ao meio-ambiente do qual todos os seres dependem para viver. Na minha opinião, o movimento de direitos animais é, em seu âmago, um movimento pelo fim da violência contra todos os seres sencientes. É um movimento que busca justiça fundamental para todos. É um movimento emergente pela paz que não para na linha arbitrária que separa os humanos dos não humanos. Mudar o paradigma hierárquico de exploração generalizada que vem dominando o mundo por milênios requer muito trabalho duro. E esse trabalho duro requer clareza.
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Se você não for vegano(a), por favor considere tornar-se vegano(a). É uma questão de não violência. Ser vegano(a) é a sua declaração de que você rejeita a violência contra os outros seres sencientes, contra si mesmo(a) e contra o meio-ambiente do qual todos os seres sencientes dependem.
Gary L. Francione
Professor, Rutgers University
© 2012 Gary L. Francione
Tradução: Regina Rheda
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sábado, 7 de janeiro de 2012

Direitos animais, bem-estar animal e a analogia com a escravidão

Postado por Gary L. Francione em seu blog em 4 de janeiro de 2012

Muitos veganos ficam irritados com os não veganos que dizem se importar moralmente com os animais mas continuam a consumi-los. Os veganos frequentemente invocam uma analogia com a escravidão humana. É assim: todos nós concordamos que o uso de humanos exclusivamente como recursos—a condição conhecida como escravidão humana—é moralmente detestável. Similarmente, se as pessoas acham que os animais são membros da comunidade moral, então também não deveriam estar tratando os animais exclusivamente como recursos, e deveriam se opor à sua escravidão. E se alguém se opõe à escravidão animal, esse alguém adota e promove o veganismo.
A analogia funciona?
Sim e não. A analogia da escravidão, que venho usando há duas décadas, não é particularmente convincente se o que se afirma é que os não humanos, ao contrário dos escravos humanos, têm interesse apenas em não sofrer e não têm interesse na vida continuada ou em autonomia. E essa é uma crença central da posição bem-estarista que vem desde Bentham—a de que os animais têm a capacidade de sofrer e têm interesse em não sofrer, mas são cognitivamente diferentes de nós, pois não são autoconscientes e não têm interesse na existência continuada. Em outras palavras: os bem-estaristas afirmam que os animais não têm interesse em não ser escravos; eles têm apenas interesse em ser escravos “felizes”. Essa é a postura promovida por Peter Singer, cuja visão neobem-estarista deriva diretamente de Bentham. Portanto, segundo essa postura, não importa, moralmente, que usemos os animais, mas importa como os usamos. A questão moral não é o uso, mas o tratamento.
Junte-se a isso o fato de que a maioria dos bem-estaristas são utilitaristas—eles afirmam que o que determina o certo ou o errado é aquilo que maximiza o prazer, a felicidade, ou a satisfação de interesses de todos os afetados—e você acaba ficando com a opinião de que, contanto que um animal não sofra “demais”, e dado que o animal não tem interesse na própria vida, é melhor ele ter tido uma vida razoavelmente agradável e ido parar nos pratos dos humanos do que não ter sequer vivido. Se oferecermos uma vida razoavelmente agradável e uma morte relativamente indolor aos animais, na realidade lhes conferimos um benefício trazendo-os à existência e usando-os como nossos recursos.
Portanto, é compreensível que, se a pessoa é bem-estarista, ela não aceita a analogia com a escravidão. A escravidão “feliz” não é um problema; é uma coisa boa. O problema da escravidão humana é que mesmo as formas “humanitárias” ou “compassivas” de escravidão violam os direitos humanos fundamentais à existência continuada, à autonomia, etc. Mas se os animais não têm esses interesses, então a escravidão “humanitária” ou “compassiva” pode ser exatamente aquilo de que se precisa. E é justamente esse modo de pensar que motiva o movimento pela carne/produtos animais “felizes” e toda a iniciativa bem-estarista de tentar tornar o uso de animais mais “humanitário”, mais “compassivo”, etc.
Tenho argumentado que esse modo de pensar é problemático sob ao menos dois aspectos:
Primeiro, a noção de que os animais não humanos não têm interesse na existência continuada—de que eles não têm interesse em suas próprias vidas—se apoia no conceito especista de qual o tipo de autoconsciência que importa moralmente. Tenho argumentado que todo ser senciente tem, necessariamente, interesse na existência continuada—todo ser senciente valoriza sua própria vida—e que dizer que só aqueles animais (animais humanos) que têm um determinado tipo de autoconsciência têm interesse em não ser tratados como mercadorias é desviar da questão moral fundamental. Mesmo se, como algumas pessoas afirmam, os animais não humanos viverem em um “presente eterno”—e eu penso que, em termos empíricos, não é esse o caso, pelo menos para a maioria dos não humanos que exploramos rotineiramente e que têm memórias do passado e um sentido de futuro—eles têm, em cada momento, um interesse em continuar a existir. Dizer que isso não conta no plano moral é simplesmente especista.
Segundo, mesmo se os animais não tiverem interesse em continuar vivos e tiverem apenas interesse em não sofrer, a noção de que, em termos práticos, algum dia seremos capazes de dar o devido peso moral a esse interesse não passa de fantasia. A noção de que os proprietários algum dia darão um peso significativo ao interesse que a propriedade tem em não sofrer simplesmente não é realista. É possível em teoria? Sim. É possível em termos práticos no mundo real? Absolutamente não. Os bem-estaristas frequentemente falam em tratar os “animais de granja ou fazenda” como tratamos os cães e gatos que amamos e consideramos membros da nossa família. Será que alguém realmente pensa que isso é possível na prática? O fato de não pensarmos em comer nossos cães ou gatos é um sinal de que isso não é possível.
Além do mais, uma tese central do meu trabalho tem sido a de que como os animais são propriedade—são bens econômicos ou mercadorias—geralmente só protegemos seus interesses quando obtemos um benefício econômico ao dar essa proteção. Isso significa que o padrão de bem-estar animal sempre será muito baixo (como é agora, e apesar de todo o absurdo da exploração “feliz” ou “compassiva”), e a reformas do bem-estar geralmente aumentarão a eficiência produtiva; ou seja, protegeremos os interesses dos animais em situações onde o tratamento esteja sendo economicamente ineficiente, e, na maioria das vezes, as reformas do bem-estar farão muito pouco além de corrigir essas ineficiências. Por exemplo, o uso de celas de gestação para porcas é economicamente ineficiente; há alternativas supostamente mais “humanitárias” que na realidade aumentam a eficiência produtiva. Similarmente, asfixiar frangos com gás é mais eficiente, em termos econômicos, do que atordoá-los com choque elétrico.
Então eu compreendo por que os bem-estaristas têm um problema com a analogia da escravidão. Acho que eles estão errados sob vários aspectos, mas eles nunca discutem realmente os argumentos. Em vez disso, eles alegam que sou “divisionista” e “não ligo para os animais que estão sofrendo agora” porque apresento esses argumentos. Alguns deles fazem mais drama ainda.
O paradigma dos direitos que, conforme a minha interpretação, requer moralmente a abolição da exploração animal e exige o veganismo como uma questão de justiça fundamental, é radicalmente diferente do paradigma bem-estarista que, em teoria, foca na redução do sofrimento e, na realidade, foca em dar uma arrumadinha nas margens economicamente ineficientes da exploração animal. Na ciência, quem se alinha com um paradigma é frequentemente incapaz de entender e envolver quem se alinha com um outro paradigma, precisamente porque as linguagens teóricas que eles usam são incompatíveis.
Penso que a situação seja semelhante no contexto do debate entre os direitos animais e o bem-estar animal. E é por isso que os bem-estaristas simplesmente não podem entender ou aceitar a analogia da escravidão.
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Se você não for vegano(a), por favor considere tornar-se vegano(a). É uma questão de não violência. Ser vegano(a) é a sua declaração de que você rejeita a violência contra os outros seres sencientes, contra si mesmo(a) e contra o meio-ambiente do qual todos os seres sencientes dependem.
Gary L. Francione
Professor, Rutgers University
© 2012 Gary L. Francione
Tradução: Regina Rheda
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