sexta-feira, 18 de março de 2011

Por que o veganismo deve ser a base

Postado por Gary L. Francione em seu blog em 15 de março de 2011

Caros(as) colegas:
Imaginem que vocês estejam conversando com um grupo de entusiastas de carros clássicos que guiam só pelo prazer de guiar e não para qualquer propósito em particular. De fato, essas pessoas acreditam que guiar carros clássicos por prazer é uma tradição importante e uma parte crucial de sua cultura; e todo dia elas entram em seus carros e saem guiando, simplesmente porque gostam muito de fazer isso e consideram isso uma parte integral do que elas são.
Se vocês fossem tentar argumentar com essas pessoas que é moralmente errado usar seus carros para guiar até um consultório a fim de fazer um exame médico, ou para levar um parente machucado ao pronto socorro, elas certamente pensariam que a posição de vocês não fazia o menor sentido. Afinal, elas acham que é aceitável guiar puramente por prazer. De fato, guiar por prazer é um aspecto importante de suas vidas. Por que elas iriam aceitar que guiar por uma razão importante é uma coisa má, quando acham que guiar pelo simples prazer de guiar é uma coisa boa?
Imaginem uma segunda situação. Em vez de tentarem convencer esse grupo de pessoas de que guiar por uma razão médica importante é errado, vocês afirmam que guiar por prazer até um determinado destino, que não é diferente de nenhum outro destino, é errado. Mais uma vez, o grupo que guia por prazer acharia a posição de vocês bizarra porque é inteiramente arbitrária. Por que guiar por prazer até um lugar é diferente de guiar até um outro lugar? E se elas fossem aceitar que é errado guiar até um destino escolhido arbitrariamente, isso deixaria em aberto a questão de se é errado guiar por prazer em geral. Sua amada atividade estaria ameaçada.
Essas simples hipóteses nos ajudam a entender as razões morais, lógicas e psicológicas de por que o veganismo deve ser a base do movimento pelos direitos animais e por que as campanhas de um só tema não fazem o menor sentido.
Comer animais: sofrimento e morte para o prazer do paladar
A maioria das pessoas come carnes e outros produtos animais. Ninguém sustenta que necessitamos comer esses produtos para ter uma ótima saúde; pelo contrário, as pessoas ligadas à medicina dominante estão argumentando, com cada vez mais frequência, que os produtos animais são nocivos à saúde humana. Mas, sejam as comidas de origem animal nocivas ou não, elas certamente não são necessárias. Até mesmo a conservadora American Dietetic Association reconhece isso:
A posição da American Dietetic Association é que as dietas vegetarianas apropriadamente planejadas, incluindo as dietas totalmente vegetarianas (veganas), são saudáveis, nutricionalmente adequadas, e podem oferecer benefícios na prevenção e no tratamento de certas doenças. As dietas vegetarianas bem planejadas são apropriadas aos indivíduos durante todos os estágios de suas vidas, incluindo gravidez, lactação, infância e adolescência, e aos atletas.
E sabemos que a criação de animais para consumo é um desastre ecológico.
A única justificativa que temos para o terrível sofrimento e a morte que impomos (mesmo nas condições mais “humanitárias”) aos 56 bilhões de animais terrestres e a um número desconhecido, mas provavelmente tão assombroso quanto esse, de peixes e outros animais aquáticos é que os animais têm um sabor gostoso. Participamos dessa matança impressionante de animais por razões de prazer, diversão e conveniência. Consumir animais por nenhuma boa razão é uma parte importante do cotidiano da maioria das pessoas. De fato, muitas pessoas acreditam que essa imposição completamente desnecessária de morte e de horrendo sofrimento é uma importante tradição; algo que integra nossa suposta “excepcionalidade humana”.
Vivissecção
Agora, imaginem-se tomando a posição de que o uso de animais em experimentos biomédicos é uma coisa errada. Como argumentei, há sérios questionamentos quanto à necessidade da vivissecção em termos empíricos, e não há nenhuma justificativa moral para a vivissecção. Mas a esmagadora maioria do público acredita que a vivissecção seja importante para a saúde humana.
Por que as pessoas que consideram aceitável impor sofrimento e morte aos animais por razões de prazer iriam achar que há algo moralmente errado em usar animais para um propósito que elas consideram (erradamente, na minha opinião) necessário e benéfico? Por que as pessoas que estão dispostas a encher suas artérias de gordura animal por gostarem do sabor das comidas de origem animal não estariam dispostas a apoiar a matança de mais animais por pensarem (mais uma vez: erradamente, na minha opinião) que essas mortes adicionais resultarão numa cura para seus problemas de saúde?
A resposta é bem clara: elas não iriam, não vão. Não podem.
Argumentar para as pessoas que comem produtos animais que a vivissecção é moralmente errada é como argumentar para os entusiastas de carros clássicos que guiar por uma razão importante é moralmente errado. Esses entusiastas acham que está certo guiar pela razão trivial do prazer. Por que eles iriam achar que há algo errado em guiar o carro até um consultório para fazer um exame médico, ou guiar até um pronto socorro? E se eles fossem aceitar que guiar por uma razão importante é errado, então sua amada atividade estaria correndo sérios riscos, como questão geral.
É por isso que, apesar dos 200 anos de campanhas contra a vivissecção, a prática não apenas continua, mas também o número de animais usados em experimentos biomédicos está, na realidade, aumentando.
Outras campanhas de um só tema
Agora considerem as campanhas de um só tema que não tratem da vivissecção, tais como aquelas contra determinados tipos de caça esportiva, ou aquelas contra o uso de animais selvagens em circos, ou aquela contra a pele. Essas campanhas são análogas a selecionar arbitrariamente uma destinação e dizer aos nossos entusiastas de carros clássicos que guiar até esse local é errado ou pior do que guiar até uma outra destinação. Eles acham que está certo guiar por prazer, então por que pensariam que guiar até um destino selecionado arbitrariamente é errado?
Mais uma vez: eles não pensariam. Não poderiam.
Semelhantemente, aqueles que consomem produtos animais pensam que é moralmente aceitável impor sofrimento e morte aos animais pelo simples prazer do paladar, e participam desse uso de animais todo dia, diversas vezes por dia. Por que eles iriam pensar que caçar é errado, quando eles vão ao supermercado e compram produtos feitos a partir de animais que sofreram tanto quanto, se não mais ainda do que, os animais que são caçados? Por que iriam pensar que usar animais por outras razões triviais é moralmente inaceitável? Eles comem animais por prazer. E vão a zoológicos e a corridas de cavalos. Por que pensariam que animal selvagem em circo representa algum problema em particular? Eles vestem lã e couro, dois produtos responsáveis por um tremendo volume de sofrimento animal. Por que teriam algum problema com as peles em particular?
É por isso que, apesar de décadas de campanhas de um só tema contra a caça, esse “esporte” persiste; é por isso que a mais longa campanha de um só tema da história da defesa animal – a campanha contra a pele – tem sido um completo fracasso. Embora essas campanhas possam gerar algum interesse, a realidade é que no final das contas elas devem fracassar, numa cultura que considera aceitável o consumo de animais como comida.
Enquanto vivermos numa cultura que não questiona o uso de animais para comida – de novo: não simplesmente o tratamento dado aos animais, mas o uso dos animais – as pessoas em geral nunca abraçarão massivamente as campanhas de um só tema. A maioria das pessoas verá essas campanhas como arbitrárias. A maioria das pessoas reconhecerá que os usos de animais que são o assunto das campanhas de um só tema não são piores que os usos que elas consideram aceitáveis. E elas estão dispostas a participar da exploração desnecessária de animais em todos os dias de suas vidas; por que teriam algum problema com outro uso de animais que também é desnecessário?
Recentemente, conversei com um homem que tinha se envolvido numa campanha contra caçar num determinado parque. Ele se retirou da campanha e me explicou que decidiu que o que os caçadores estavam fazendo não era diferente do que ele fazia ao comprar e comer carne de seu supermercado local, e, já que certamente não estava para desistir da carne, ele não conseguia ver a lógica em se opor à caça.
E é claro que ele estava certo. Caçar é uma atividade horrível, e é muito preocupante que alguém realmente goste de matar um veado ou um coelho. Mas qual é a diferença entre comer os animais que são caçados e comer os animais cujos cadáveres são adquiridos num estabelecimento comercial? Resposta: não há nenhuma diferença. Na realidade, o animal cujo cadáver foi adquirido no estabelecimento comercial pode ter tido uma vida e uma morte piores ainda – mesmo se ele tiver sido um animal “feliz”, criado numa fazenda “feliz” e abatido num matadouro projetado por Temple Grandin – do que o animal que foi caçado.
Estive conversando com uma outra pessoa que, durante anos, esteve envolvida na campanha para cessar a matança de focas com porretadas. Ela se retirou daquela campanha porque decidiu que não havia nenhuma diferença entre a pele de foca e a pele ou a lã de qualquer outro animal, e, como não ia desistir de usar roupas feitas a partir de animais, a campanha pelas focas na realidade era baseada simplesmente no fato de que os grupos de defesa animal podiam tirar partido do fato de que as focas eram adoravelmente fofinhas, e isso não era uma boa base para uma posição moral.
E é claro que ela estava certa. Pele de foca não é diferente de nenhum outro tipo de pele, e pele não é diferente de lã nem de couro. É tudo terrível, e não deveríamos usar nenhuma peça de vestuário de origem animal. Simplesmente não é necessário. Mas então, também não é necessário comer carnes, laticínios, ovos, etc. E enquanto pensarmos que comer animais é aceitável, questionar outros usos desnecessários, ou caracterizar um tipo de uso como pior do que outro uso, parecerá arbitrário porque é arbitrário.
Em 2007, escrevi um editorial de jornal, que foi republicado em 2009, argumentando que as rinhas de cães de Michael Vick não diferiam, em termos morais, do fato de consumirmos produtos animais. Recebi literalmente milhares de respostas àquele editorial. Muitas pessoas concordam com a minha posição; muitas disseram que o editorial as fez pensar sobre o veganismo; muitas disseram que se tornaram veganas depois de pensarem sobre o meu argumento. Mas ninguém – ninguém – que discordava da minha posição foi capaz de articular por que aquilo que Vick fez era pior do que aquilo que o resto de nós faz. Isso é porque não há nenhum modo coerente de distinguir o que Vick fez daquilo que todas as outras pessoas fazem.
Em 2009, quando Vick saiu da prisão e assinou contrato com o Philadelphia Eagles, eu conversei com um homem que me disse que, embora ele fosse um grande fã do Eagles e fosse continuar indo aos jogos do time, ele nunca conseguia gostar de ver Vick jogar por causa da questão das rinhas de cães.  Perguntei-lhe se ele comia cachorros-quentes e hambúrgueres quando assistia aos jogos. Ele disse “sim”. Eu lhe disse que os animais usados para fazer os produtos de que ele gostava tinham vidas e mortes piores ainda do que os cães de Vick.
Ele não teve uma resposta para me dar. É porque não há resposta.
Conclusão
A conclusão é clara: a menos que, e até que, consigamos que as pessoas questionem e rejeitem seu consumo diário e totalmente desnecessário de animais, não conseguiremos que elas se oponham seriamente aos usos de animais que consideram necessários ou não triviais, como a vivissecção, nem aos outros usos desnecessários que veem, corretamente na minha opinião, como escolhidos arbitrariamente pelos defensores dos animais e como não sendo piores do que os usos que elas mesmas apoiam e praticam em todos os dias de suas vidas.
O veganismo deve ser a base, se formos ter alguma esperança de mudar do paradigma dos animais como coisas para o paradigma dos animais como pessoas não humanas.
*****
Se vocês não forem veganos(as), tornem-se veganos(as). É fácil; é melhor para a sua saúde e o planeta. Mas o mais importante é que é a coisa moralmente certa a fazer. Vocês nunca farão mais nada tão fácil e tão gratificante em suas vidas.
Gary L. Francione
© 2011 Gary L. Francione
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Tradução: Regina Rheda