sábado, 1 de janeiro de 2011

A necessidade da teoria

Postado por Gary L. Francione em seu blog em 29 de dezembro de 2010

Caros(as) colegas:
Muitos defensores dos animais parecem pensar que não necessitamos de nenhuma teoria. Só precisamos atuar “pelos animais”; podemos nos preocupar com a teoria mais tarde.
Essa visão está errada em pelo menos dois aspectos.
Primeiro, se não tivermos uma teoria, como haveremos de escolher quais as coisas que devemos promover? Se eu quero fazer algo hoje para ajudar os animais, e não tenho uma teoria sobre o status moral dos animais e que coisas devo fazer, como vou escolher o que fazer?
Se eu quero passar esta tarde conversando com um grupo de pessoas sobre a exploração animal, e não tenho uma teoria, como vou escolher sobre o que falar? Como vou escolher se argumento que eles não devem consumir nenhum produto animal ou que eles devem consumir produtos animais supostamente “felizes”?
A resposta é muito clara: não podemos fazer nenhuma escolha inteligente ou informada se não tivermos uma teoria que guie nossa escolha. Antes de falar com as pessoas; antes de decidir que ativismo adotar, tenho de ter clareza quanto a se a posição moral correta é que devemos consumir ovos de aves “livres de gaiolas”, ou se é que não devemos comer ovo; tenho de ter clareza quanto a se a posição moral correta é comer frango asfixiado com gás em vez de eletrocutado, ou se é não comer frango.
É interessante que a maioria das pessoas que alegam que não necessitamos de uma teoria para atuar “pelos animais” agora mesmo têm, na realidade, uma teoria: elas são adeptas da teoria de que a questão não é que nós usamos os animais, mas como usamos os animais; de que é aceitável usar os animais contanto que os tratemos de uma maneira “humanitária”. Então essas pessoas alegam que não deveríamos nos incomodar com as abstrações da teoria: deveríamos simplesmente sair promovendo ovos de aves “livres de gaiolas”, ou frangos asfixiados com gás, ou seja o que for.
Mas a posição delas está informada por uma teoria.
E isso me traz ao meu segundo ponto.
Às vezes, algumas ideias são uma parte tão forte da nossa cultura que nem sequer percebemos o quanto elas moldam a nossa realidade. Uma dessas ideias é que os homens, enquanto grupo, têm mais valor do que as mulheres, e que as mulheres são mais valorizadas por sua aparência, enquanto fornecedoras de serviços sexuais, do que por suas habilidades. Essa ideia está tão disseminada na nossa cultura que muitos de nós nem sequer têm consciência dela; enxergamos como “normal” a maneira como as mulheres são representadas culturalmente e não vemos essa representação como um reforço do patriarcado.
Outra dessas ideias é que os animais não se importam se nós os usamos, mas só com o modo como os tratamos. Essa ideia tem uma história que podemos traçar de volta no tempo, e é a fundação mesma da postura do bem-estar animal que domina nosso pensamento sobre a relação humanos/não humanos exatamente como o patriarcado domina nossa posição quanto ao valor das mulheres.
No século 19, reformadores sociais progressistas como Jeremy Bentham argumentaram que devíamos incluir os animais na comunidade moral porque, muito embora eles fossem diferentes dos humanos sob vários aspectos, eles podiam, como os humanos, sofrer, e isso era suficiente para estabelecer nossas obrigações morais para com os animais. Segundo Bentham, embora um cavalo ou cão adulto seja mais racional e mais capaz de se comunicar do que um bebê humano, “a questão não é Eles podem raciocinar? nem Eles podem falar?, mas Eles podem sofrer?”. Mas isso não significava que não podíamos usar e matar animais para propósitos dos humanos contanto que os tratássemos bem. Segundo Bentham, os animais vivem no presente e não têm consciência daquilo que perdem quando tiramos suas vidas. Se os matarmos e comermos, “será melhor para nós, sem nunca ser pior para eles. Ao contrário de nós, eles não fazem aquelas longas antecipações dos tormentos futuros”. Se, como Bentham aparentemente sustentava, os animais não tivessem, em termos factuais, interesse em continuar a viver, e a morte não fosse um dano para eles, então o fato de matarmos animais, em si, não suscitaria um problema moral desde que os tratássemos e os matássemos de um modo “humanitário”.
E é exatamente assim que a maioria de nós pensa sobre a questão do uso de animais. A visão de Bentham é explicitamente promovida por Peter Singer, e mesmo o teorista de direitos Tom Regan sustenta que a morte é um dano maior para os humanos do que para os não humanos porque estes têm menos oportunidades de satisfação do que aqueles.
Eu diria que essa visão – que o nosso uso de animais, se “humanitário”, é moralmente aceitável – é, de uma forma ou outra, aceita por praticamente todo mundo. Isto é, mesmo quem nunca ouviu falar de Jeremy Bentham ou Peter Singer acredita nessa visão teórica que está tão presente que ninguém sequer reconhece o quanto ela molda nossa visão da relação humanos/animais.
E como o sexismo, também tão presente na nossa cultura, ela está errada.
A visão teórica de que os animais não têm interesse em suas próprias vidas e não se importam se os usamos e matamos desde que façamos isso de um modo “humanitário” é baseada na noção de que ter interesse em continuar a viver requer um sentido de consciência de si que associamos com os humanos normais.
E conforme discuto em meu livro mais recente, The Animal Rights Debate: Abolition or Regulation?, em outro livro meu, Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog?, e também neste website, essa posição é especista pois privilegia arbitrariamente a consciência de si parecida com a dos humanos.
Essa posição teórica quanto ao valor menor da vida animal é o grande problema teórico que está sempre presente. Quer gostemos de teoria, quer não, temos de dar conta dessa ideia antes de empreender defesa animal. Se concordarmos com Bentham e Singer e com a teoria dominante do bem-estar animal, então promovemos reformas bem-estaristas; promovemos ovos de aves “livres de gaiolas”; promovemos o consumo de frangos asfixiados com gás em vez de eletrocutados; apoiamos selos de carnes/laticínios “felizes”; promovemos o “flexitarianismo” e enxergamos o veganismo simplesmente como um modo de reduzir sofrimento. Se não apoiarmos aquela visão teórica e, em vez disso, considerarmos todos os seres sencientes como tendo igual valor moral para o propósito de não ser usados como recursos, então promovemos o veganismo como base moral inegociável.
E não podemos alegar que aceitamos a igualdade mas apoiamos reformas já que o pessoal vai continuar consumindo animais de todo jeito. Se realmente acreditamos em igualdade, promover a reforma do bem-estar é semelhante a promover a escravidão “humanitária” ou a pedofilia “humanitária”. Fora isso, a reforma bem-estarista não funciona em termos práticos. Os animais são mercadorias; eles são propriedade. Custa dinheiro proteger os interesses deles, e mesmo os esquemas de tratamento mais “humanitários” jamais superarão o nível que seria caracterizado como tortura se os envolvidos fossem humanos.
Pode tentar o quanto quiser, você não vai conseguir evitar a teoria. A única coisa que você pode fazer é escolher uma teoria de igualdade ou escolher aceitar a teoria dominante do bem-estar, que supõe que a vida animal tem menos valor moral.
Mas você precisa escolher, e seu ativismo será necessariamente informado pela sua escolha.
Se você não for vegano(a), torne-se vegano(a). É fácil; é melhor para a sua saúde e o planeta. Mas o mais importante é que é a coisa moralmente certa a fazer.
Gary L. Francione
© 2010 Gary L. Francione
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Tradução: Regina Rheda