quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Toda campanha é uma “campanha de um só tema”?

Postado por Gary L. Francione em seu blog em 3 de fevereiro de 2010

Caros(as) colegas:
Em resposta aos meus comentários (1, 2) sobre o assunto Johnny Weir e ao meu comentário geral sobre campanhas centradas em um só tema, algumas pessoas disseram que se a questão Johnny Weir é uma campanha de um só tema, então todas as campanhas, inclusive os esforços de promover o resgate e a adoção de animais, os santuários e até mesmo o veganismo são campanhas de um só tema.
Essa afirmação revela uma profunda falta de compreensão da natureza de uma campanha de um só tema.
Uma campanha de um só tema envolve identificar alguns usos específicos de animais ou alguma forma de tratamento, e fazer disso o objeto de uma campanha para cessar o uso ou modificar o tratamento. O problema da campanha de um só tema é que ela apresenta um uso específico ou um tratamento como moralmente distinguível das outras formas de uso ou tratamento, e, ao fazer isso, dá a entender, explícita ou implicitamente, que as outras formas de exploração são menos problemáticas no plano moral.
A questão Weir apresenta um exemplo clássico do problema. Foi escrita uma carta aberta a Weir, reclamando do fato de ele usar pele no ombro de seu figurino. Não foi uma carta aberta escrita para a equipe inteira, relativa ao uso das peles dos animais em geral, incluindo seus patins de couro ou quaisquer peças de vestuário de lã ou seda. A carta aberta focou em um só produto animal sendo usado por uma só pessoa em uma só instância.
O principal problema desse tipo de campanha é que não há nenhuma distinção moral coerente entre pele, couro, lã e seda. Weir, de forma muito efetiva, desviou a atenção do assunto principal da carta aberta, fazendo, ele mesmo, essa simples observação:
“Todos os patinadores estão usando patins feitos de vaca”, disse Weir.
“Talvez eu esteja usado uma raposinha bonitinha, enquanto os demais estão usando vaca, mas todos nós estamos usando animais”.
Além do mais, a carta aberta não apenas promoveu uma campanha de um só tema, mas fez isso no contexto da reforma bem-estarista tradicional, porque fala sobre tratamento e não sobre uso. A carta aberta focou na “indústria” da pele e no tratamento implicado nos abates nas fazendas de pele ou na floresta. Falar em fazendas de peles e armadilhas é um convite à resposta: “OK, então devemos descobrir um modo de tornar a produção de peles mais ‘humanitária’”.
No que concerne a animais domesticados, animais de fazenda e animais selvagens que precisam de lares, as tentativas ou esforços de proporcionar esses lares não constituem campanhas de um só tema, ou pelo menos não da maneira que prevê os problemas que identifiquei. Ao domesticar os animais não-humanos, nós os metemos numa terrível enrascada, e se pudermos removê-los  de um abrigo que mata ou então das ruas, devemos fazê-lo. Dentro da medida em que temos a oportunidade de oferecer um lar a um animal domesticado ou selvagem, essa é uma coisa boa. Esses são esforços que envolvem o auxílio a animais individuais (ou animais em situação individual); não são campanhas que têm como alvo usos ou práticas que identificamos como piores do que outros usos ou práticas necessária e implicitamente aprovados por nós pelas razões discutidas em meu ensaio precedente. São atividades qualitativamente diferentes.
E eu sempre falo sobre adoção/resgate de animais dentro de uma estrutura específica que rejeita o uso e enfatiza o veganismo ético como a questão central. Eu nunca falo sobre adoção/resgate como uma atividade isolada, mas apenas como uma entre as muitas obrigações que compreendem a abordagem abolicionista como um todo. Embora eu apoie a adoção de não-humanos sem lar porque esses indivíduos precisam de lares, eu sempre deixo bem claro que devemos parar completamente de produzir ou de facilitar a produção de não-humanos domesticados.
A “carta aberta” a Johnny Weir não faz nenhuma dessas coisas. Teria sido possível escrever uma carta a Weir que mencionasse a pele como apenas um aspecto de uma mensagem abolicionista geral, que também discutisse explicitamente o uso de todas as peles de animais incluindo couro, lã, etc., e que mencionasse o veganismo. Essa carta teria apresentado uma mensagem forte, em vez de uma mensagem fraca que faz a pele parecer moralmente distinguível do couro (ou dos outros produtos animais que nem sequer foram mencionados) e que Weir efetivamente descartou em duas sentenças.
Eu também apoio santuários, mas, de novo, eu falo sobre santuários como uma parte de uma abordagem abolicionista geral, e eu promovo esses santuários que transmitem uma mensagem explicitamente abolicionista. Dentro da medida em que um santuário proporciona um lar para os animais, isso é bom, mas, dentro da medida em que o santuário também apoia uma mensagem reformista bem-estarista, ou promove campanhas centradas em um só tema, eles desfazem pelo menos uma parte da coisa boa que fazem.
Eu também acho que pode ser que os santuários sejam usados por grupos endinheirados para levantar fundos. Se você quiser contribuir para um santuário, você deve se informar sobre as finanças desse santuário e consultar a respeito dos salários pagos às pessoas envolvidas na organização que o administra.
Também, algumas pessoas sugeriram que nós não deveríamos criticar a campanha de um só tema ou bem-estarista de um grupo que também administra um santuário porque isso poderia afetar as doações que são feitas ao grupo, o que poderia prejudicar os animais. Essa sugestão é uma variante do argumento geral que ouvimos o tempo todo: “O grupo X faz coisas boas para os animais, portanto não critique o que o grupo X faz, porque isso prejudicará os esforços desse grupo para ajudar os animais”. Isso é receita certa para o desastre e para a morte de um movimento social. Foi precisamente esse raciocínio que levou o movimento dominante a permanecer em silêncio diante da obscenidade que é a matança cometida pela PETA de 85% dos animais que ela mesma “resgata” e do persistente uso que essa organização faz da misoginia como estratégia de marketing.
Quanto à campanha pelo veganismo ser uma campanha de um só tema, eu não sei bem o que dizer porque essa sugestão revela uma confusão tão profunda que talvez nem seja possível falar sobre ela. De qualquer modo, quando eu falo sobre veganismo, estou falando sobre não comer nem usar nenhum animal, nem nenhum produto derivado de animal, para qualquer propósito humano que seja. Mas mesmo que você restrinja seu entendimento do veganismo a “uma dieta vegana”, você ainda está defendendo a eliminação de uma prática que envolve mais animais do que todos os outros usos de animais combinados, porque todo mundo consome animais e produtos de origem animal.
Além disso, todo uso de animais é derivativo do fato de comermos animais e produtos animais. Se isso mudasse, todo o resto iria atrás. Por exemplo, uma pessoa que aceita o fato de que tem a obrigação moral de não comer animais nem produtos animais necessariamente aceitaria também o fato de que não deve usar peles nem ir a circos. Portanto, o veganismo é qualitativamente diferente de uma campanha contra a pele que tem como alvo um segmento relativamente pequeno do público, ou de uma campanha pelo vegetarianismo que, implícita ou explicitamente, distingue a carne dos outros produtos animais e passa a mensagem de que está certo consumir produtos animais que não contenham carne.
Espero que isto ajude a esclarecer a questão das campanhas de um só tema. Elas realmente não funcionam e apenas deixam as pessoas confusas pois reforçam a falsa ideia de que certas formas de exploração animal são menos objetáveis do que outras.
Gary L. Francione
© 2010 Gary L. Francione

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Tradução: Regina Rheda