domingo, 17 de outubro de 2010

Um sonho bem-estarista tornado realidade: o livro de registros de abusos de animais

Postado por Gary L. Francione em seu blog em 15 de outubro de 2010

Caros(as) colegas:
Imaginem que vocês queiram achar uma campanha de um só tema que lhes permitirá levantar fundos infinitamente, 24 horas por dia, 7 dias por semana, para que vocês (e, mais importante, seus doadores) possam “ajudar os animais”.
Imaginem que essa campanha não exija que ninguém mude seu comportamento em relação aos animais. As pessoas podem continuar a comer carne, tomar leite e usar lã ou couro, ir ao circo e passar a tarde vendo corrida de cavalos no hipódromo, ao mesmo tempo em que podem se sentir “compassivas”.
Imaginem uma campanha cujo ponto essencial seja definir o termo “abuso de animais” de um modo tão estreito que nenhum potencial doador – por mais carne, leite, ovo, queijo, manteiga, sorvete ou seja o que for que ele consuma, e qualquer que seja a forma de exploração legalizada de que ele participe – será considerado comprometido com o “abuso de animais”.
Tudo que qualquer um tem de fazer é apoiar um gesto completamente insignificante – com uma doação, é claro.
Não procurem mais; eu tenho a campanha para vocês: a campanha pelo livro de registros de abusos de animais.
Esta semana, Suffolk County, que fica na metade oriental de Long Island, criou o primeiro livro de registros de abusos de animais da nação. A lei em questão exigirá que as pessoas condenadas por cometerem crueldade contra animais se registrem junto às autoridades, ou ficam sujeitas a prisão e multas. A lei de Suffolk tem como modelo as “Megan’s Laws”, que criam livros de registros de abusadores de crianças.
Então agora seremos capazes de identificar “abusadores de animais”, pelo menos em uma parte de Long Island.
Mas esperem.
Os supermercados em Suffolk County que vendem partes de corpos de animais e outros produtos de origem animal estarão no livro de registros? Bem, não, porque a venda de partes e produtos animais é perfeitamente legal. Não é “abuso de animais”.
E aqueles habitantes de Suffolk County que consomem produtos animais – aqueles dentre nós que criam a demanda por produtos animais, em primeiro lugar – estarão no livro de registros? Bem, não, é claro que não. Consumir animais não é uma violação da lei anticrueldade.
Então quem é o alvo dessa lei?
Bem, segundo a matéria lincada acima, havia a mulher que torturava os gatos:
A lei foi motivada por vários casos de abuso de animais nos últimos meses, incluindo aquele de uma mulher de Selden, acusada de forçar seus filhos a vê-la torturar e matar filhotes de gatos e dúzias de cachorros, e depois enterrar os animais de estimação em seu quintal.
A esta altura, deveria estar claro para vocês qual é o problema aqui. Ao definirmos “abuso de animais” como o comportamento patológico raro que desrespeita as leis anticrueldade – e que provavelmente responde por menos de um milionésimo de um por cento do uso de animais – deixamos em paz o que é considerado “normal”. Reforçamos a noção de que uso não é abuso, de que o abuso só ocorre como uma exceção à regra, em vez de ser a regra de todos os segundos de todos os dias. Além do mais, essa lei também se aplicará, na maior parte das vezes, a situações envolvendo os animais que “fetichizamos”, como cães, gatos, etc. Vocês sabem, aqueles animais que amamos e consideramos membros de nossas famílias, enquanto enfiamos garfos em todos os outros.
Em resumo, isso é um gesto insignificante que servirá apenas para reforçar a noção de que está certo explorar os animais, contanto que não “abusemos” deles. Realmente, isso declara que nosso uso “normal” de animais não é abuso.
Deveria estar claro, também, por que esse tipo de campanha é um sonho de bem-estarista tornado realidade: essa é uma campanha que simplesmente todo mundo pode apoiar e que fará as pessoas se acharem virtuosas. Apenas pessoas “más” abusam de animais, e elas estão no livro de registros criminais; o resto de nós é “gente compassiva”.
Posso lhes assegurar que essa campanha será uma mordomia sem fim para o bem-estar animal. De fato, se você quiser entrar nessa barca, é melhor se apressar; ela já está zarpando:
Os ativistas do bem-estar animal esperam que a lei, aprovada por unanimidade terça-feira no condado de 1 milhão e meio de habitantes, próximo à cidade de Nova York, inspirará governos por toda a nação, do mesmo modo que o livro de registros Megan’s Law para abusadores de crianças proliferou na década passada.
….
Mais de doze estados introduziram legislação para estabelecer livros de registros semelhantes, mas Suffolk County é a primeira entidade governamental a aprovar a lei, disse Stephan Otto, diretor de assuntos legislativos do Animal Legal Defense Fund.
A PETA já declarou seu entusiástico apoio ao livro de registros. A PETA acha que Temple Grandin, a projetista de matadouros e consultora da indústria da carne, deveria estar na lista? Grandin é uma “abusadora de animais”? Não; a PETA deu um prêmio a Grandin.
E quanto ao Whole Foods, que vende carnes e outros produtos “felizes” oriundos de animais que foram torturados? Não, porque a PETA (junto com a maioria das outras corporações grandes de bem-estar animal) apoia os produtos animais “felizes” vendidos pelo Whole Foods.
E quanto às organizações de defesa animal que têm polpudos orçamentos, mas matam animais em vez de ter um programa de adoção? Elas são “abusadoras”? Não, a PETA mata 90% dos animais que acolhe em suas instalações, então isso não pode constituir abuso, pode?
E quanto às pessoas que consomem produtos animais? A PETA as considera “abusadoras de animais”? Isso seria um pouco constrangedor, dado que metade dos membros da PETA, segundo Dan Mathews, o vice-presidente sênior da PETA, não é nem mesmo vegetariana.
Isso prova meu argumento de que a ideia do livro de registros de abusos é simplesmente uma tentativa de definir “abuso” como o incidente patológico da tortura de gatinhos e cães no quintal. Mas isso é extremamente fora do comum. O que constitui o real abuso é a exploração diária praticada por gente comum, incluindo a exploração perpetrada, facilitada e aprovada pelas empresas de bem-estar animal.
Há 50 estados e Washington, D.C., vários territórios e centenas de milhares de condados, cidades, cidadezinhas, etc. Essa é uma campanha que tem o potencial de continuar por décadas e terá uma durabilidade quase ilimitada para efeito de levantar fundos. Já posso até ver caminhadas em prol do livro de registros, guiadas por várias celebridades e permitindo que todas as mulheres, homens e crianças comprem seus bilhetes de saída da classe dos “abusadores de animais”, ao fazerem uma doação para assegurar que os verdadeiros “abusadores de animais” estejam em algum livro de registros criminais, enquanto o resto de nós continua a se sentir em paz com sua consciência. Estou certo de que já existem planos para a realização de eventos de mídia com mulheres seminuas, vestindo apenas pedaços de papel onde estarão os nomes dos delinquentes que constarem nos livros de registros. Oh, os sacrifícios que algumas pessoas farão “pelos animais”.
E quanto à mulher de Long Island que torturava os gatinhos e os cachorros? Não é uma boa ideia que tenhamos um livro de registros para identificar pessoas como aquela?
Dentro da medida em que o livro de registros pode fornecer informações a abrigos que ajudarão a identificar perigos para futuras adoções, tudo bem. Mas em um sentido fundamental, a mulher que praticou esses atos terríveis não difere de nenhuma pessoa que consome animais.
Como vocês veem, aquela pessoa torturou gatinhos e cachorros porque obteve algum prazer ou satisfação a partir daqueles atos. É errado fazer aquilo? Certamente. Mas em que, realmente, o que ela fez difere do que todas as outras pessoas fazem? A maioria de nós come produtos animais, e os animais a partir dos quais esses produtos são feitos foram tão torturados quanto os gatinhos e cachorros no caso de Long Island. Mas aquela mulher é uma criminosa, e o resto de nós, que apoia o livro de registros e truques semelhantes, é “compassivo”. Não entendo...
Alguns anos atrás (2007), eu fiz a observação de que Michael Vick, que foi preso por se envolver com rinhas de cães, não era realmente diferente do resto de nós. Ele gostava de ficar diante de uma arena vendo os cães lutarem; o resto de nós gosta de ficar diante da churrasqueira assando cadáveres de animais que foram tão torturados quanto (ou mais torturados ainda do que) os cães de Vick. A única diferença é que a maioria das pessoas paga outras para fazerem o trabalho sujo. Mas nós apreciamos consumir os produtos da exploração, exatamente como Vick apreciava o que fazia.
Tudo é esquizofrenia moral.
Se você não for vegano(a), torne-se vegano(a). É fácil, melhor para a sua saúde e o planeta e, mais importante, é a coisa certa e justa a fazer. É o que devemos aos outros animais. Se você for vegano(a), então eduque os outros sobre o veganismo.
Gary L. Francione
© 2010 Gary L. Francione
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Tradução: Regina Rheda